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quarta-feira, 3 de junho de 2009

Uma Trilogia Discreta

O cinema, pela sua vertente da ficção e da multiplicidade do possível - que vai além de qualquer impossibilidade física do mundo real -, é das poucas linguagens cujo subtexto pode atingir patamares insuspeitados. Qualquer investigação atenta a alguns filmes pode revelar intenções escamoteadas em simples ângulos de câmera, ou sequências, ou figurinos, ou cenários e outros tantos elementos da linguagem cinematográfica além do próprio diálogo ou da simples imagem em movimento. Claro que se pode sempre cair nalgum equívoco de julgamento e enxergar subtexto onde não há nada além do que há na tela. Mas certos elementos e coincidências parecem se encaixar tão azeitadamente que fica difícil negar que há ali, na disposição desses fatores, um significado que ultrapassa o elementar.

Minha admiração pelo diretor Steven Spielberg ganhou contornos muito mais sérios e profundos depois que me foi revelado a ligação por trás de três filmes recentes do diretor. Três filmes que em princípio nada tem em comum, fora o fato de serem dirigidos pela mesma pessoa, e que se revelam interligados diretamente, formando uma trilogia contundente e dissecadora de um trauma recente na vida de uma nação e na história da civilização contemporânea: os atentados de 11 de setembro de 2001.

Assim, os filmes O Terminal, Guerra dos Mundos e Munique são, na verdade, uma trilogia sobre o mundo pós-11 de setembro. Mas qual coesão improvável pode unir três filmes completamente diferentes entre si aos referidos atentados e como eles formam uma unidade conceitual? Para entender como isso é possível, vamos a uma análise mais detalhada de cada um.

O Terminal: primeiro filme da suposta trilogia, trata de um imigrante que ao chegar aos EUA se vê proibido de entrar no país. Sem possibilidades financeiro-burocráticas de retornar a seu país, é obrigado a permanecer indefinidamente no terminal do aeroporto, uma espécie de limbo entre a “terra das oportunidades” e seu próprio e modesto mundo. Dentro desse terminal, vemos surgir aos poucos um micro-cosmos representativo da sociedade norte-americana e da problemática do imigrante. Há o poder constituído que primeiro barra e depois fecha os olhos ao problema, vemos o preconceito xenófobo, a dificuldade de integração e interação, vemos o esforço do imigrante em sobreviver ao ambiente hostil, vemos as barreiras culturais, de idioma, de costumes. Mas principalmente o que se vê é um endurecimento e uma forte mudança no trato ao imigrante. E isso como efeito direto do trauma pós-11 de setembro, quando se passa a olhar com profunda desconfiança a qualquer estrangeiro que tenta entrar no país. É através desse drama cômico que Spielberg expõe a reação paranóica contra estrangeiros que tomou conta do país após os atentados.

Guerra dos Mudos: sendo ao mesmo tempo uma adaptação de um livro do século 19 e uma refilmagem de um clássico dos anos 50, este filme não deixa de ser emblemático como parte de uma trilogia. É também nele que mais se encontra traços claros que remetem ao 11 de setembro, como as cinzas das pessoas desintegradas pelos alienígenas, ou o fato de que as naves estavam há muito tempo escondidas sob o solo sem que ninguém suspeitasse. Ou ainda em diálogos onde se diz textualmente que não se pode ocupar um país (ou um planeta, ou uma civilização), pois as história já mostrou mil vezes que isso não funciona; e também o personagem de Tim Robbins, que ridiculamente encarna o pensamento tacanho e belicista do revide puro e simples, sem se importar com consequências.

Impera em Guerra dos Mundos de Spielberg o horror absoluto de uma invasão por um inimigo desconhecido e mais poderoso. Horror que trás dois lados, duas perspectivas diferentes, mas pertencentes a uma mesma unidade factual: o terror estupefato do impensável acontecendo diante de seus olhos (o mesmo que se sentiu diante da queda das torres gêmeas) e o terror da fragilidade ante um poderio bélico incomparável e insuperável (o mesmo que devem ter sentido as populações do Afeganistão e do Iraque). Duas faces da mesma moeda, cara e coroa; um jogo de perde-perde. Mas em qualquer dos dois ângulos o que prevalece é o pesadelo da certeza de impotência diante dos fatos.

Munique: o último e melhor filme da trilogia vence os demais em complexidade e adensamento reflexivo. O filme parte da dissecação e expurgo de um fato real e crítico que mancha a história do estado de Israel. Trata-se do que ficou conhecido como operação Ira de Deus, uma ação ultra-secreta do Mossad, o serviço secreto israelense, autorizada pela então primeira-ministra de Israel, Golda Meir. A operação consistia em caçar e assassinar uma lista de nomes supostamente ligados ao grupo terrorista Setembro Negro, que nas Olimpíadas de Munique de 1972, sequestrou e executou 9 atletas israelenses. A questão levantada no filme é o papel do Estado como instrumento de vingança e a política belicista do revide a qualquer preço. Esta distorção nas atribuições do Estado e o descarte de qualquer meio político-diplomático para a busca e punição de culpados remete imediatamente à política Bush pós-11 de setembro e sua sanha em “vingar”, com seu vasto poderio bélico, os atentados sofridos pelos EUA. Contudo, é através da desconstrução da figura do herói vingador e sua derrocada dentro de sua própria consciência, que Spielberg dá o golpe final em sua análise crítica dos efeitos e equívocos nocivos germinados – como frutos podres - dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001.

Três filmes díspares (uma comédia humana, uma desventura catástrofe e uma tragédia grega moderna), diferentes em tudo, mas sutilmente alinhavados pelas consequências de um mal maior que gera outro mal maior e a dissecação sorrateira dos mecanismos que azeitam o mal dentro do humano e o humano dentro do mal.

2 comentários:

Ronaldo Junior disse...

Eu não duvido de mais nada nessa vida!

Nathalya Buracoff disse...

Sensacional!!Show de bola!! O cara é faixa preta oitavo dan!
Adoro teorias!!