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terça-feira, 12 de maio de 2009

Neo-realismo

Na última reunião do Comtatos, a Déia me perguntou se eu já tinha visto Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica (1948), que ela acha um filme lindo. Sim, já vi e tenho aqui esse filme, que é um marco do neo-realismo italiano e uma história comovente. Gancho perfeito para falar desse movimento que subverteu o foco narrativo e estético do cinema italiano, influenciando cineastas do mundo inteiro.

Ainda que desde 1914 Nino Martoglio, com seu filme Perditi nel Buio, já lançava as características do neo-realismo, o que se considera como obra inaugural desse importante movimento do cinema italiano é Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rosselini, lançado em 1945. Separando Perditi nel Buio de Roma, Cidade Aberta estão mais de 30 anos, duas grandes guerras mundiais e o fascismo italiano, consolidado na figura de Mussolini. É o fascismo e a guerra que explica o vácuo entre uma obra e outra. Pois a não continuidade da estética inaugurada por Martoglio se deve a ascensão fascista e sua imposição de um cinema alienante, com épicos grandiosos ou comédias e dramas sem qualquer ligação com a realidade. Por outro lado, o ressurgimento de um cinema naturalista é conseqüência direta da guerra, como se verá a diante.

Com o fim da II Guerra Mundial a Itália devastada lança um olhar sobre si mesma e se vê alquebrada. O que está em ruínas não são apenas seus edifícios, mas também seu espírito. O neo-realismo é produto dessa constatação pós-guerra. Uma visão que, muito além da crítica ou do questionamento, se pauta pela explicitação da realidade.

São filmes a céu aberto, quase documentais, com improvisos do elenco e improvisos técnicos. Esse novo cinema apresenta o homem comum, do povo e os problemas do cotidiano como a fome, o desemprego, as dificuldades da vida. É um cinema que explora a dimensão do ser humano frente a uma realidade social e política adversa, frente à vida e suas pequenezas grandiosas, como comer ou conseguir trabalho. A câmera, a luz e o olhar são documentais, assim como muitos personagens, que interpretam a si mesmos. E é dentro dessa realidade sem rodeios ou maquiagens que se dimensiona o humano, em sua grandeza e em sua pequeneza, quando a força é sua vontade e quando a fraqueza é seu desespero.

Nesse início, o cinema neo-realista italiano é também um reflexo quase metalingüístico, onde a precariedade da vida mostrada na tela é sintomática na precariedade da realização do filme. Assim, a escassez de recursos se reflete na projeção e no que é projetado. Como em Roma, Cidade Aberta, em que Rosselini filmou com rolos de filmes de qualidades diferentes, que nota na irregularidade fotográfica do filme, ou como em Ladrões de Bicicleta, cuja precariedade técnica é visível. Mas essa precariedade em nada diminui a dimensão da obra e retrato que ela faz de um tempo e do espírito de um tempo.

Contudo, o cinema neo-realista, como característica do povo italiano, não se entrega ao sombrio, pois é um movimento que também reflete a esperança no recomeço. Diferente, por exemplo, do expressionismo alemão, que após a derrota na Primeira Grande Guerra, surgiu recheado de um profundo lúgubre pessimismo, mas que também que gerou obras memoráveis como O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, e Nosferatu, de Friedrich W. Murnau.

Roma, Cidade Aberta, marco inicial do movimento, ao contrário do que se pode imaginar, não foi um sucesso de público. As pessoas, com a vocação natural das massas ignorantes para a alienação e o escapismo entorpecente, simplesmente não queriam ir ao cinema para verem sua miséria refletida na tela. Foram os intelectuais que perceberam a grandeza daquele cinema que surgia, sua estética e dimensão, e o elevaram á condição de arte e de vanguarda. Transformado em escola, o neo-realismo influenciou diversos diretores pelo mundo, como Nelson Pereira do Santos, que aqui no Brasil realizou, dentro dos mesmos cânones, um de seus grandes filmes: Rio 40 Graus.

Muitos filmes e diretores fundamentaram e deram grandiosidade a esse movimento estético, mas são três nomes os pilares desse cinema: Roberto Rosselini, Vitório De Sica e Luchino Visconti.

Rosselini realizou, além de Roma, Cidade Aberta, Paisá (1946) e Germânia, Anno Zero (1947); em 1948 Visconti realiza La Terra Trema e De Sica define em absoluto o espírito do neo-realismo com sua obra-prima Ladrões de Bicicleta (1948), e também realiza, na década seguinte, seu magistral Umberto D., de 1952.

Já nos anos 50, com a reconstrução da Europa e a recuperação econômica financiada pelo plano Marshal, o neo-realismo, como expressão da realidade, também teve de mudar, e seus principais diretores - mesmo sob protestos de críticos e idealistas que queriam a permanência do reflexo de cunho social-proletário - passaram a trazer para a tela questões existenciais e metafísicas.

Portanto, é à partir de um desdobramento natural do neo-realismo que surgem diretores e obras-primas do cinema italiano, que iriam estimular e influenciar gerações futuras de cinéfilos e cineastas em todo o mundo. É nessa esteira que surgem gênios como Federico Fellini, Michelangelo Antonioni e Píer Paolo Passolini.

Para encerrar, reafirmo o que disse o crítico Luiz Carlos Merten sobre esse importante movimento e sua herança:

“Nesse processo, a herança do neo-realismo seria fundamental, mostrando que o cinema não necessita de recursos hollywoodianos para se firmar. Astros, estrelas, malabarismos técnicos. Tudo isso pode servir a um projeto hegemônico, industrial, de cinema, como é o de Hollywood. Mas se o compromisso era com a identidade humana e social de cada país, o neo-realismo revelou-se uma fonte inesgotável de inspiração.” - Cinema – Entre a realidade e o artifício, Ed. Artes e Ofícios; pag. 85.

2 comentários:

Carlos Alberto disse...

Grande Roger, só você mesmo para falar de um assunto tão dificil como o neo-realismo no cinema e isso só mesmo para os entendidos (ou seja, uns três, com você no meio), eu mesmo acho que vi apenas um filme do Vittorio De Sica, e Visconti é simplesmente um gênio...o que você acha do Leopardo, com Burt Lancaster? Parabéns pelo texto...abração

Sandra SILVA disse...

Nenhum filme é tão específico e tão universal quanto Ladrões de bicicletas.
A bicicleta torna-se um simbolo dos sonhso humanos....juntando ao final triste e desesperador de um desempregado, frente a vergonha de encarar para a família sua derrota. nossa chorei demais nesse filme roger.
um filme simples, cheio de poesia, e que ainda retrata tão bem os dias de hoje.
bjs