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quinta-feira, 13 de março de 2008

Pianinhos, pianinhos...

Os práticos que me perdoem, mas o dia está perfeito para divagações. Essa chuva interminável – e que a essa altura deve ter cooperado para São Paulo bater outro recorde de congestionamento – cria naturalmente uma atmosfera cinzenta e melancólica, barra a luz do sol e produz um barulho de pista molhada em corrida de Fórmula 1 que torna inevitável falar sobre a existência humana e a busca por uma vida mais tranquila.

Uma das formas de alcançar essa tranquilidade é através dos rituais de purificação. Desde tempos imemoriáveis os homens comungam regularmente tais práticas, que têm como finalidade o engrandecimento espiritual. Entre os índios da América do Norte, e mesmo da América do Sul, havia ritos que celebravam deuses, e amiúde terminavam em curiosos banquetes, nos quais eram servidos – todos o sabem – carne humana. Na antiguidade, romanos e gregos davam vazão a seus recônditos instintos em celebrações regulares de orgias e bacanais. Com o advento do cristianismo como religião oficial da Idade Média, foram se formando novas práticas purificadoras, que marcam o encerramento de um ciclo e início d'outro. Entre os exemplos que sobreviveram estão o Natal e o Reveillón. Em diferentes regiões e épocas, há festas particulares, que não vêm ao caso enumerar. Porém, em todos esses ritos, o resultado buscado é alguma espécie de engrandecimento. Pessoal, comunal ou social.

Proveniente do latim carnevare, o carnaval é, por definição arbitrária de sei-lá-quem, a autêntica festa brasileira – algum dia discutiremos o que significa ser brasileiro – e um perfeito exemplo de ritual de passagem. Orgiástico por excelência, é o momento em que várias convenções sociais são pervertidas. Durante quatro dias e quatro noites, pouco importam os conceitos de certo e errado, se deus está debaixo da mesa e o diabo, atrás do armário. A ordem é libertar-se de pudores, medos e sentir-se invadido e dominado por desejos e impulsos reprimidos durante dias, semanas e meses a fio. Tudo é burlado e misturado num êxtase de cores, cheiros, gostos e sensações. Maravilhosos desfiles cheios de pompa têm lugar em um país (com letra minúscula mesmo) marcado de maneira indelével pela pobreza da maioria da população. Sexo, drogas e suor tomam o lugar de puritanismos, monogamia e sanitarismo. Finda a festa, costuma-se ouvir pelas ruas na quarta-feira subsequente: “agora começa o ano”. Todos purificados. E pianinhos.

Graças a Alá, os roqueiros que detestam carnaval também têm sua chance orgiástica: os shows que vez ou outra acometem as grandes capitais brasileiras. Pois nesses momentos, os maltrapilhos cabeludos (e os calvos engravatados também) têm a chance de exorcizar seus demônios. Holofotes e luzes coloridas, sons distorcidos, palavras cortantes, discursos contundentes, decibéis de envergadura cavalar são arremessados contra a platéia que se goza, se deleita, respondendo com toda a força de seus pulmões e prejuízo de cordas vocais. Grita, pula e xinga. Com vontade. Um verdadeiro clube da luta orgasmático. Cotoveladas, socos e pontapés são manifestações genuínas de cada ser humano. Não existe ser imune à vontade de esmurrar alguém na vida (Para a felicidade de todos e o bem geral da nação, esperamos que tais desejos tenham sido devidadmente reprimidos). No momento do show, entretanto, a atmosfera de raiva, o sentido de inconformidade com as regras vigentes interrompem seu ciclo repressor levado a cabo durante determinado tempo, para terem vez e voz em lugar lugar sacramentado pela ocasião. Ali é o palco para que essas pessoas (subproduto das contradições sociais, em minha opinião) tenham sua oportunidade de expelir as sensações negativas acumuladas dentro de cada um. Naquele momento, as regras sociais, de comportamento e postura, são abolidas em prol do orgasmo instintivo. Não é diferente dos rituais orgiásticos em sua essência, apesar de o ser na forma. Todos saem dali com o espírito engrandecido, com o espírito purificado. Terminada a celebração, todos – ou a maioria – se põem a caminhar para casa, continuar suas vidas. Voltar ao sistema que os condiciona diariamente. Violência não é necessária, nem desejada, por isso novamente reprimida. A dose que cabe a cada um já foi liberada durante o show, acompanhando a música.

Nas semanas que se seguem, eis que os outrora enfurecidos roqueiros demonstram uma incompreensível capacidade de amar tudo e todos, eleger suas musas e cores inspiradoras. Respiram aliviados o odor úmido e suave de um jardim de damas da noite. Pianinhos, pianinhos.

4 comentários:

Ronaldo Junior disse...

I Wanna Rock´n´Roll all Night and party every day!!!

Ricardo Moreira Leite disse...

Ótimo texto...perfect.

Estréia de alto nível.

Sobre o texto, let´s go Rock....

abs

Nara Soares disse...

tenho que concordar com O Rick...uma ótima estreia

Nathalya Buracoff disse...

God give rock and roll to us!

Thanx Lord!